O objeto da ADPF 946, referente à lei do município de Uberlândia/MG, não permite ser processado como ação direta de Inconstitucionalidade por ausência de previsão legal.
O Ministro do STF – Supremo Tribunal Federal – Luís Roberto Barroso, suspendeu na última quinta, 7, uma lei de Uberlândia, município de Minas Gerais, que proibia sanções a pessoas não vacinadas.
O ministro afirmou que a lei do município em questão afronta entendimento do STF segundo o qual a determinação de vacinação compulsória é legítima.
Vamos aos fatos
O presidente da Câmara Municipal de Uberlândia, vereador Sérgio do Bom Preço, promulgou no dia 15/2/22 lei de autoria do também vereador Cristiano Caporezzo, aprovada em plenário durante sessão ordinária.
A Lei nº 13.691/2022, VEDA A VACINAÇÃO COMPULSÓRIA CONTRA COVID-19 EM TODO O TERRITÓRIO DE UBERLÂNDIA, A APLICAÇÃO DE SANÇÕES CONTRA PESSOAS NÃO-VACINADAS, INCLUSIVE AGENTES E SERVIDORES PÚBLICOS, E GARANTE A TODOS, SEM DISCRIMINAÇÃO, A DIGNIDADE HUMANA E AS LIBERDADES CIVIS BÁSICAS PÉTREAS.
O Presidente da Câmara Municipal de Uberlândia, com fundamento na Lei Orgânica Municipal em seu §7°, art. 27 e §7º do art. 66 da Constituição Federal PROMULGA a seguinte Lei: Art. 1º Esta Lei é regida pelo supra-princípio da Dignidade Humana, dos Direitos Humanos, da Legalidade e respeito às Liberdades Fundamentais Individuais das Pessoas, sendo elas o direito à vida, à inviolabilidade da intimidade e do próprio corpo, a objeção de consciência, a liberdade de pensamento e expressão e a liberdade de ir e vir, todos garantidos pela Constituição Federal de 1988, pela Constituição do Estado de Minas Gerais e pela Lei Orgânica do Município de Uberlândia. Art. 2º Fica vedada a vacinação compulsória contra a Covid-19 em todo o território de Uberlândia e distritos. Art. 3º Fica vedada toda e qualquer sanção administrativa aos agentes e servidores públicos do Município de Uberlândia que não desejarem tomar a vacina contra a Covid-19, sendo vedada a discriminação, vexação, humilhação, coação ou perseguição contra aquele que optar por não inocular em seu organismo o imunizante. Parágrafo Único. A vedação a que se refere o caput deste artigo estender-se-á a servidores públicos efetivos, comissionados e temporários, de atividades essenciais e não essenciais, lotados em órgãos da administração pública direta e indireta, empresas públicas e mistas, agências reguladoras, representações, entidades e instituições públicas. Art. 4º Nenhum gestor ou superior hierárquico poderá exigir comprovante de vacinação contra a Covid-19 no âmbito da Administração Pública Municipal. Art. 5º Nenhuma pessoa será impedida de ingressar, permanecer e frequentar qualquer local, seja público ou privado, em razão do livre exercício da objeção de consciência, recusa e resistência em ser inoculado com substância em seu próprio organismo, inclusive vacina anti-Covid-19. Parágrafo único. Fica garantido à pessoa que se recusar a inocular imunizante contra Covid-19 o direito integral de ir, vir e permanecer, sem relativização do direito em relação à pessoa vacinada. Art. 6º Aplicar-se-á multa fixa no valor de 10 salários mínimos à pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que descumprir essa Lei, sem prejuízo de outras sanções de caráter administrativo, civil e penal. Art. 7º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Uberlândia, 15 de fevereiro de 2022. SÉRGIO DO BOM PREÇO PRESIDENTE Autoria do Projeto: Ver. Cristiano Caporezzo.
Extrai-se da lei que nenhuma pessoa será impedida de ingressar, permanecer e frequentar qualquer local, seja público ou privado, em razão do livre exercício da objeção de consciência, recusa e resistência em ser inoculado com substância em seu próprio organismo, inclusive vacina anti-covid-19.
O dispositivo legal garante à pessoa que se recusar a inocular o imunizante contra a covid-19 o direito integral de ir, vir e permanecer, sem relativização do direito em relação à pessoa vacinada.
Além disso, foi prevista uma multa no valor de dez salários-mínimos à pessoa física ou jurídica, pública ou provada, que descumprir a lei, sem prejuízo de outras sanções de caráter administrativo, civil e penal.
O caso chega ao Supremo
O partido Rede Sustentabilidade ajuizou ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – combinado com pedido de tutela de urgência em face da Câmara Municipal de Uberlândia/MG, bem como em face do município de Uberlândia.
O Partido sustentou que a lei municipal 13.691/22 feriu entendimento do STF, esposado na ADPF 913/DF, especialmente nos arts. 4º e 5º daquela lei. Segundo os dispositivos,
Art. 4º nenhum gestor ou superior hierárquico poderá exigir comprovante de vacinação contra a Covid-19 no âmbito da Administração Pública Municipal. Art. 5º Nenhuma pessoa será impedida de ingressar, permanecer e frequentar qualquer local, seja público ou privado, em razão do livre exercício da objeção de consciência, recusa e resistência em ser inoculado com substância em seu próprio organismo, inclusive vacina anti-Covid-19. Parágrafo único. Fica garantido à pessoa que se recusar a inocular imunizante contra Covid-19 o direito integral de ir, vir e permanecer, sem relativização do direito em relação à pessoa vacinada.
A Rede relembra que a ADPF 913/DF já enfrentou a matéria referente à exigência de comprovante de vacinação, o “passaporte de vacina”, além de restrições de ingresso, circulação e permanência a pessoas, tendo sido consideradas medidas constitucionais.
Diante da ADPF 913/DF, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, tratar sobre o mesmo objeto, o partido pediu que fosse declarada a prevenção entre as duas ADPF, o que torna o Ministro Barroso também relator desta ADPF.
Em síntese, o partido Rede Sustentabilidade requereu a concessão de tutela de urgência para suspender a lei 13.691/22, do município de Uberlândia ou, alternativamente, que fossem suspendidos os efeitos e/ou a vigência e/ou a eficácia dos arts. 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, da lei municipal.
ADPF: algumas considerações
A. Conceito: a Constituição Federal, bem como a legislação infraconstitucional se escusaram de conceituar prefeito fundamental. Sendo assim, essa função ficou a cargo da doutrina e do STF.
A ADPF é uma ação de competência originária do STF, com efeitos erga omnes e vinculante, tendo por objeto evitar ou reparar lesão a prefeito fundamental resultante de atos do poder público.
B. Previsão legal: a Constituição Federal tratou do assunto no § 1º do art. 102.
Art. 102 (…)
§ 1º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo STF, na forma da lei.
Além da Constituição, foi editada a lei 9.882/99, a qual regulamenta a ADPF. Antes do advento desta lei, o STF já havia decidido que o art. 102, §1º, da CF, materializava norma Constitucional de eficácia limitada, ou seja, enquanto não houvesse lei que preceituasse esta ação Constitucional, o Supremo não poderia atuar (Pet 1.140 AgR, j, 02.05.1996, DJ de 31.05.1996).
A. Competência: de acordo com o art. 102, § 1º, da CF, a ADPF será apreciada pelo STF.
B. Legitimados: os legitimados para a propositura da ADPF serão os mesmos da ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade genérica. É o que se extrai dos seguintes dispositivos legais:
Constituição Federal
Art. 103. podem propor a ação direta de Inconstitucionalidade e a ação declaratória de Constitucionalidade
I. o Presidente da República;
II. a Mesa do Senado Federal;
III. a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV. a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V. o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI. o Procurador-Geral da República;
VII. o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII. partido político com representação no Congresso Nacional;
IX. confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Lei 9.868/99
Art. 2º Podem propor a ação direta de Inconstitucionalidade:
I. o Presidente da República;
II. a Mesa do Senado Federal;
III. a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV. a Mesa de Assembléia Legislativa ou a Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V. o Governador de Estado ou o Governador do Distrito Federal;
VI. o Procurador-Geral da República;
VII. o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII. partido político com representação no Congresso Nacional;
IX. confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
C. Medida liminar em sede de ADPF: o art. 5º da lei 9.882/99, estabelece que o STF, por decisão da maioria absoluta de seus membros, pelo menos seis ministros, poderá deferir pedido de liminar na ADPF.
Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave ou em período de recesso, o relator poderá conceder liminar, a qual será submetida à referendo do Tribunal Pleno.
D. Exemplos de preceito fundamental:
Na ADPF 405 MC/RJ, a min. Rosa Weber afirmou que poderiam ser considerados preceitos fundamentais:
– A separação e independência entre os poderes;
– O princípio da igualdade;
– O princípio federativo;
– A garantia de continuidade dos serviços públicos;
– Os princípios e regras do sistema orçamentário (art. 167, VI e X, da CF/88)
– O regime de repartição de receitas tributárias (arts. 34, V e 158, III e IV; 159, §§ 3º e 4º; e 160 da CF/88;
– A garantia de pagamentos devidos pela Fazenda Pública em ordem cronológica de apresentação de precatórios (art. 100 da CF/88).
E. É cabível contra decisões judiciais? Sim. A ADPF pode ser proposta contra ato do poder público e não apenas contra lei ou ato normativo, caso da ADI.
(…) Multiplicidade de ações judiciais, nos diversos graus de jurisdição, nas quais se têm interpretações e decisões divergentes sobre a matéria: situação de insegurança jurídica acrescida da ausência de outro meio processual hábil para solucionar a polêmica pendente: observância do princípio da subsidiariedade. Cabimento da presente ação. (…)
STF. Plenário. ADPF 101, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 24/6/09.
F. ADPF contra súmula: A arguição de descumprimento de preceito fundamental não é a via adequada para se obter a interpretação, a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante. (STF. Plenário. ADPF 147-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 24/03/2011).
Voltando ao caso
Se o partido Rede Sustentabilidade afirma ser Inconstitucional a lei do município de Uberlândia, por qual razão não propôs, ao invés de ADPF Ação Direta de Inconstitucionalidade?
O art. 4º, § 1º, da lei 9.882/99, aponta que não será admitida ADPF quando houver outro meio eficaz capaz de sanar a lesividade. Trata-se do princípio da subsidiariedade que, segundo apontou o ministro Celso de Mello na ADPF 03, condiciona o ajuizamento da ação à “a ausência de qualquer outro meio processual apto a sanar, de modo eficaz, a lesividade indicada pelo autor”.
O objeto da ADPF 946, referente à lei do município de Uberlândia/MG, não permite ser processado como ação direta de Inconstitucionalidade por ausência de previsão legal. Os arts. 102, I, “a” e 125, § 2º, ambos da Constituição Federal, não tratam dessa particularidade. Esse silêncio, o “silêncio eloquente”, na hipótese de controle concentrado, é proposital. Dessa forma, não cabe ADI genérica no STF em face de lei municipal.
Portanto, diante do princípio da subsidiariedade, agiu bem o partido ao processar a ação como ADPF.
Com a palavra, o Relator
Acolhendo o pedido do partido Rede, o ministro-relator Luís Roberto Barroso concedeu a medida cautelar, suspendendo os efeitos da lei 13.691/22.
Relembrou o ministro que o STF já reconheceu a legitimidade da vacinação compulsória, por meio de medidas indutivas indiretas, como a restrição de atividades e de acesso a estabelecimentos, afastando apenas a vacinação forçada, por meio de medidas invasivas, aflitivas ou coativas. Vide ADIs 6.586 e 6.587, ambas de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski.
Barroso rememorou outro julgado de sua relatoria, o ARE 1.267.879, segundo o qual
“É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar” (grifou-se).
Afirmou ainda o Relator que:
“é firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que matérias relacionadas à proteção da saúde devem ser norteadas pelos princípios da precaução e da prevenção, de modo a que, sempre que haja dúvida sobre eventuais efeitos danosos de uma providência, deve-se adotar a medida mais conservadora necessária a evitar o dano (v. ADI 6.421, Rel. Luís Roberto Barroso, j. em 21.05.2020). De acordo com o art. 196 da CF, o direito à saúde pode ser tutelado por meio de políticas que “visem à redução do risco de doença e de outros agravos”.
O ministro inferiu os seguintes critérios para o controle de constitucionalidade de atos e normas sanitárias:
I. O respeito a standards científicos e técnicos de órgãos internacionais e nacionais com expertise na matéria;
II. A validade de utilização de meios indiretos que induzam à vacinação compulsória (que não se deve confundir com a vacinação forçada); e
III. A adoção dos princípios da prevenção e da precaução, para decisões que possam afetar a vida, a saúde e o meio ambiente.
Para o ministro, a lei 13.691/22, estabelece disciplina em sentido oposto aos parâmetros estabelecidos pelo STF. Propugnou que a norma municipal ignora os princípios da cautela e precaução ao impedir a vacinação compulsória e a adoção de medidas indiretas para estimular as pessoas a se vacinarem. Informou que a lei em comento contraria o consenso médico-científico quanto à importância da vacina para reduzir o risco de contágio por covid-19, bem como para aumentar a capacidade de resistência de pessoas que venham a ser infectadas.
O relator foi enfática ao afirmar que a lei do município de Uberlândia/MG, ao argumento de proteger a liberdade daqueles que decidem não se vacinar, na prática coloca em risco a proteção da saúde coletiva, em meio a uma emergência sanitária sem precedentes.
Cita o magistrado que a presente lei municipal estabelece disciplina contrária à norma geral estabelecida por lei federal, precisamente o art. 3º, III, “d”, da Lei nº 13.979/2020, a qual permite a determinação de vacinação compulsória para enfrentamento da pandemia da covid-19.
Art. 3º para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: […]
III. determinação de realização compulsória de: […] d. vacinação e outras medidas profiláticas.
Conclui Barroso que a lei municipal contraria a disciplina federal sem que existam peculiaridades locais que justifiquem o tratamento diferenciado o âmbito municipal (art. 30, II, da CF).